(re)Lembranças de giz
Tempos depois, quando a encontrei numa rua escura...
Tempos depois, quando a encontrei numa rua escura, seus olhos brilhantes refletiam a mesma alma de anos atrás, o rosto mudou, assim como o cabelo tornou-se alvo, mas a alma não. Era a mesma. Um breve acenar, distante e eterno foi o bastante para que o tênue tempo envilecesse.
Era ontem, aqueles cabelos negros, sua pele branca e jovial, sorria, falando. Falando talvez tudo o que sei até hoje. Seu colete branco escondia a infância solitária que passara na casa de pais adotivos, que a amavam, apenas. Descobri que seu olhar era o mesmo. Seu olhar era velho. Olhei de novo para trás e vi que continuavam os mesmos olhos e olhares. Velhos. Isso me intrigava... Aquele ermo olhar era mesmo o de Nilda. Tia Nilda. Hoje seria mais uma estranha de todas as estranhas e estranhos que passaram despercebidos por mim, não fosse aquele olhar. Tia Nilda era uma pessoa bela, enigmática. Era uma poesia gente. Anjo. Fosse então olhar de anjo, velho, tia Nilda também não seria diferente.
Os abecedes ganhavam cada dia um pouco de mim. Não à toa. Culpa de tia Nilda Pereira - que caiu da bananeira! ...
Relembranças me emocionam. Certa vez, de tamanha admiração por ela, comprei óculos iguais aos seus e fui lusco à escola. Imagine. Eram óculos incertos e grandes, nem modernos, nem antigos. Talvez protegessem seu olhar. Penso que seu olhar velho também significasse sabedoria, experiência. Mesmo que não, isso nunca lhe faltou. Talvez fosse isso o que tinha a oferecer. A mim ofereceu o que pôde. Os noventa e noves nas provas e todos os acentos descontados. Era mesmo sábia. Conseguiu mostrar que nada pode ser perfeito. Difícil de entender para meninos problemáticos de sete anos de idade. Lições. De vida e de abecede.
Haviam se passado muitas coisas e pessoas, estava pouco mais amadurecido. Tinha, porém, a mesma alma, tão carente de um beijo ao final do dia, de abraços, de elogios. Pequena alma cheia de sonhos estrelados e inconcebíveis de criança. Saudades. Nem ao menos disse meu nome de novo quando nos vimos. Fre-de-ric-co...
Lembro que Nilda nunca se casou nem tinha cara de quem namorasse ou tivesse muitas paqueras. Não teve. Das poucas vezes que a vi depois daquele ano, estava sozinha. Ela e seus olhos velhos não se casaram, não tiveram filhos, nem adotaram criança alguma. Ser solitária era seu destino.
As aulas não eram tão fáceis, os alunos de sete anos problemáticos às vezes tinham oito, nove, onze anos. Não tinham pais, mães, nada. Bem, tinham uma escola pública e Tia Nilda. Alguns ex-alunos de Tia Nilda formaram-se médicos, arquitetos, jornalistas, professores. Outros faxineiros, garis, ajudantes de obras. Destes ela se orgulha. Se orgulha muito. Tia Nilda nunca visitou ninguém na cadeia. Nem seus ex-alunos problemáticos de sete anos que já estiveram lá. Ela não se orgulha deles. Pode apenas ter uma pena de mãe, daquelas que tocam os mais abissais recantos da alma. Às vezes chora.
Sei que incerta data levou um murro. Murro de verdade. Um soco. Outrora levou um tapa em um lugar não citável. Sofria tanto com aqueles garotos e garotas que certo dia, de tanto gritar, foi dar aula muda. Sua voz esvaiu-se em tantos gritos. Uma semana muda. Sempre pareceu assim às outras professoras, nunca foi chamada a atenção, nem foi uma revolucionária, anarquista ou aderiu a algum movimento rebelde para parecer mais inteligente e inconformada para os demais. Nem greves. Não. Em greves sentia falta de seus alunos, e seus alunos, ainda que não soubessem, de seus olhares velhos e de seus gritos.
Momentos de descontração naquele ano de escola foram poucos, não sei se pelas regras ou pela nossa imaturidade. Um deles foi quando tia Nilda, chegou com os braços fartos e seu colete alvo e bem lavado, manchado. Trazia mangas. Uma aula de mangas. Comemos e comemos. Vomitamos. O sorriso de Nilda, revelado apenas em breves segundos no fim de cada aula, podia ser apreciado naquele dia por mais tempo. Longos minutos...
Tia Nilda marcou minha história. E eu agora, percebo que lágrimas abundantes descem por meu rosto de olhar distante, atemporal. Percebi que Nilda já desaparecia em meio à penumbra da rua escura. Percebi-me triste. Eram sufocadas gotas de lágrimas envelhecidas. Desapareci eu também da lembrança de segundos eternos e sussurros de minha alma afogada. São relembranças, lembranças de giz.
*Texto premiado com Medalha de Prata no II Concurso Gente Miúda de Conto - Medalha Monteiro Lobato, promovido pela Academia PanAmerciana de Letras e Artes (APALA) e selecionado para a antologia do mesmo.

Emerson Fraga
Estudante do 3º ano do ensino médio do Colégio OLY.Colunista e colaborador do Jornal Mercadão, da seção de cultura do site TUDOIN e do site litetrário Garganta da Serpente. Soma 26 prêmios artísticos, científicos e literários. 1º e 2º Lugar no III Concurso Nacional de Conto de Cordeiro (RJ)/Troféu Lygia Fagundes Telles. "Medalha de Ouro" pelo 1º Lugar Juvenil no III Concurso de Poesias "Letras do Divino", em Itanhaém-SP. "Medalha de Prata" pelo II Concurso Gente Miúda de Conto - Medalha Monteiro Lobato, promovido pela Academia PanAmericana de Letras e Artes. 1º Lugar Juvenil do VI Concurso Kelps de Poesia Falada (2007). Selecionado para antologia do IV Concurso Nacional de Literatura de Caçu nas categorias conto e poesia. Campeão da XXXI SACEM em conto, crônica e fábula. Premiado no Concurso Literário Internacional - Prêmio Cidade de Conselheiro Lafaeite (MG) na categoria crônica. Vencedor do concurso de texto e imagem ambiental "Minha Cidade é Meu Planeta", promovido pela Revista Época e British Council. Vencedor nacional de texto na 4ª Olimpíada Brasileira de Saúde e Meio Ambiente. Delegado brasileiro no Fórum Internacional Estudantil 2007, em Londres.
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