Publicado em 03/02/2009 04:59

Dia que o defunto acordou

O costume de velar os defuntos entoando hinos religiosos e tomando cachaça é, nos dias de hoje, uma cena do passado, principalmente nos grandes centros urbanos. No entanto,  na zona rural do Nordeste brasileiro

O costume de velar os defuntos entoando hinos religiosos e tomando cachaça é, nos dias de hoje, uma cena do passado, principalmente nos grandes centros urbanos. No entanto,  na zona rural do Nordeste brasileiro a tradição é preservada ficando a cargo das mulheres a cantoria e o choro e, aos homens, a ingrata tarefa de consumir a cachaça e carregar o defunto para o cemitério. Outro aspecto que particulariza a região é o costume de carregar os mortos em redes ao invés dos tradicionais caixões utilizados nas demais regiões do Brasil.


Relata  Né Nunes ter ouvido de seu avô Bertoldo um fato ocorrido na primeira metade do século  passado, próximo ao Barrigia, que durante muito tempo era lembrado e comentado na maioria dos velórios que ocorriam na região.


Corria o mês de fevereiro. O tempo abafado e de calor intenso e chuvas abundantes trouxe consigo a morte para um destemido e famoso vaqueiro, de nome Eustáquio.


Não havia boi que pudesse escapar de sua destreza com o laço ou na condução do cavalo pelos amaranhados da caatinga, a campear os que teimavam em escolher seus próprios caminhos. Nas vaquejadas era sempre o mais aguerrido e, na maioria das vezes, era o campeão.


Sua morte foi uma comoção geral e na noite que precedeu o enterro ocorreram cenas das mais comoventes, sempre que chegava um novo parente.


Grande número de vaqueiros das localidades de Pau Ferrado, Malhada Grande, Lagoa das Pedras, Minas, Aroeiras, Chamalote e São João de Sene, velhos amigos da família, se faziam presentes acompanhados de suas esposas, enquanto outros, simplesmente atraídos pela fama e pelo prestígio do destemido colega, foram levar as suas condolências para a viúva.


Teve início o velório que deveria se estender pela noite adentro, conforme mandava o exato cumprimento da tradição. Enquanto as mulheres entoavam hinos em louvor da alma do defunto, os homens se dedicavam às conversas, relebrando e engrandecendo os feitos do finado, e a consumir largas talagadas de pinga da boa. Tudo conforme os costumes.


Na manhã seguinte e chegando a hora do enterramento, a viúva apanhou no baú a melhor rede e acondicionou nela o corpo do falecido. O cemitério ficava a uma distância considerável e isto exigia um esforço maior dos homens que iriam transportar o corpo.


Nesta altura dos acontecimentos, os excessos de pinga já começavam a fazer os seus efeitos e foi nessas condições que o grupo encarregado de transportar o corpo apressadamente iniciou o seu ofício. Iam cambaleando sob o forte calor, desejosos de terminar logo com a sua missão e voltar para terminar outra, mais a seu gosto, de acabar de vez com o que restava da cachaça.


E foram andando aos tropeções rapidamente, deixando as mulheres com a cantoria  e as rezas para trás quando, de repente, faltando pouco mais de um quilômetro para chegarem ao cemitério, desabou o maior temporal.


Com a temperatura beirando os 40 graus, com a chuvarada e os fortes ventos, caiu repentinamente aguçando, ainda mais, a vontade dos carregadores de tomar mais algumas doses e a necessidade de se abrigarem.


Nas proximidades do local havia uma tapera que as intempéries e o correr dos anos ainda não haviam conseguido destruir totalmente. Restavam um teto e alguns pedaços, poucos, de paredes, que, naquelas circunstâncias, era o melhor abrigo que se poderia encontrar. Não houve um minuto de hesitação.  Abandonando o corpo do defundo no meio da estrada, sob a chuva, correram todos para se abrigarem.


Foi nesse momento que os fatores climáticos, ao que tudo indica, aliaram-se para criar o registro folclórico. O calor escaldante, seguido de uma brusca queda de temperatura, fizera retornar de um ataque de catalepsia o suposto defunto do Seu Eustáquio. Acordado de um estado de inconsciência parcial, assustado por se ver enrolado em uma rede e abandonado no meio da estrada que conduzia ao cemitério, levantou-se e, tomando um atalho, voltou apressadamente para sua casa.
Passada a chuvarada, o grupo de homens deixou o abrigo da tapera, retornando ao local onde deveria estar o corpo do finado para dar continuidade ao enterro.


Surpresa e espanto geral. Nada encontaram a não ser a rede molhada e suja abandonada no local. Um dos  que haviam se esmerado no consumo da pinga - que era da boa, sugeriu que o morto estava apressado e que teria ido sozinho para o cemitério; dessa feita, aduziu, todos deveriam se apressar para ajudá-lo a se enterrar, pois não fazê-lo era falta de consideração.


Foram e voltaram sem nada encontrar a não ser a procissão de mulheres entoando hinos que, sem nada saber, seguiam em direção ao cemitério.


Diversas conjecturas foram feitas e, sem que nenhuma delas levasse a uma conclusão viável do que poderia ter acontecido, decidiram voltar para a casa da viúva para dar a notícia aos filhos e parentes que não tinham acompanhado o féretro. 


Lá chegando, encontraram somente o defunto que tentava convencer a dois filhos aparvalhados, já que os demais parentes haviam se embrenhado nas matas próximas fugindo avoradamente à chegada dele, de que continuava vivo e nunca havia morrido.


Após reunir novamente todo o grupo, o que não foi tarefa fácil, os homens concluíram que o melhor a fazer para espantar os mal-assombrados era adquirir um novo estoque de pinga da boa, matar um bode e um porco, chamar o safoneiro e, na melhor tradição do Nordeste, comemorar o retorno do falecido com muita comilança, rela-bucho e beberrança.


Romão da Cunha Nunes, Francisco de Carvalho Dias Filho e Luiz Antônio Franco da Silva

Professores da Escola de Veterinária da UFG

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