Publicado em 09/10/2006 08:21

UNIVERSIDADE BRASILEIRA

Dilemas da uinversidade brasileira é consequência das politicas governamentais

    Os estudos comparativos sobre educação superior na América Latina não têm enfatizado adequadamente as singularidades da experiência brasileira, na qual o Brasil sempre ocupou uma posição diferente. No ensino básico, temos um déficit secular se comparado aos países do Cone Sul. Basta referir a distância que se estabeleceu entre nosso limitado sistema escolar durante o Império e a República Velha e os avanços, desde a segunda metade do século XIX, dos nossos vizinhos platinos. As políticas educacionais de Sarmiento na Argentina, de Varela no Uruguai, e de Andrés Bello no Chile, voltadas para criar as bases de uma cidadania republicana, estabeleceram um amplo sistema de ensino fundamental.

        Os efeitos dessa insuficiência se refletem até hoje, se considerarmos a situação ainda crítica do ensino fundamental e médio em muitas regiões do Brasil e os índices de ingresso ao ensino superior brasileiro. Apesar de a taxa bruta de escolarização superior ter crescido significativamente entre 1950 a 1994, a porcentagem da matrícula de jovens de 18-24 anos no ensino superior é bastante inferior à da Argentina (38,9), à do Uruguai (29,9) e à do Chile (26,6).

    Na educação superior também somos singulares frente à tradição universitária hispano-americana. A universidade pública brasileira regional é temporã, nunca teve a centralidade de suas congêneres ibero-americanas que, com a independência (séc. XIX), foram transformadas em instituições nacionais.

        Enquanto os conquistadores espanhóis implantaram universidades, desde o século XVI, no Brasil o ensino superior profissional somente a partir do século XIX, mediante um conjunto de faculdades e escolas estatais (Medicina de Salvador e Rio de Janeiro, Direito de Olinda/Recife e São Paulo, Faculdade de Farmácia e Escola de Minas de Ouro Preto, Politécnica do Rio de Janeiro etc.) tornou-se realidade. Preferimos cultivar o gosto pelo bacharelismo de nossas elites imperiais em Coimbra e, apenas na década de 1930, fundou-se a Universidade de São Paulo que se tornou o paradigma da universidade brasileira.

        No entanto, o que está em jogo, para além da questão da autonomia, são as novas relações entre Estado, universidade e seu financiamento. Na Europa, apesar da tradição histórica de universidades autônomas, os especialistas mostram que, nas últimas décadas, a ação dos governos tem limitado sua abrangência, em decorrência das políticas em ciência e tecnologia. Mesmo nos Estados Unidos, pesquisas mostram crescentes restrições dos governos estaduais com relação às suas universidades públicas. Na América Latina, embora preservada em alguns países como México ou Uruguai, observam-se, também, ações estatais limitadoras na Argentina e no Chile da tradicional autonomia.

        A discussão sobre o complexo problema não pode, no entanto, se limitar à defesa de uma bandeira histórica no plano dos princípios, mas seu conteúdo amplo e concreto tem de ser examinado à luz das estratégias governamentais sob a pressão das agências internacionais. Ressalte-se, aliás, que nessas questões críticas, a Unesco e o Banco Mundial se colocam geralmente em campos opostos.

        No caso brasileiro, o paradoxo localiza-se na análise do princípio da autonomia universitária, inscrita na Constituição de 1988, tornou-se letra morta para as instituições públicas federais submetidas a controles absurdos, enquanto que as instituições privadas, uma vez reconhecidas pelo governo, passam a gozá-la plenamente imunes a qualquer controle governamental.

        Daí decorre um dos problemas do ensino superior no Brasil: a hegemonia do sistema privado de educação superior sobre o público federal e estadual. As instituições privadas expandiram-se em três décadas de 40 para 75 das matrículas, gerando um processo de privatização que se acentua durante os governos militares. No Brasil, a democratização do acesso à educação superior não se faz pela via da massificação do sistema público, como no México e na Argentina, mas através de um ensino privado, pago e de discutível qualidade.

        Cabe ressaltar que no Brasil, em termos latino-americanos, o sistema de educação superior público consolidou sua qualidade acadêmica: além de responsável por 90 da pesquisa científica e tecnológica do país, tem igualmente uma qualidade média superior à do setor privado hegemônico. Tal diferença resultou, em grande medida, de políticas estimuladas pelo sonho militar do Brasil-potência, que consolidaram essas vantagens comparativas pelos pesados investimentos no sistema público. Essas desenvolveram a pós-graduação e implementaram ações coerentes no campo do desenvolvimento científico e tecnológico. Os recursos substanciais concedidos pelas agências de financiamento (CAPES, CNPQ e FINEP) profissionalizaram o sistema federal, com a implantação do tempo integral e com o apoio de um amplo sistema de bolsas (pós-graduação no país e no exterior e de iniciação científica), expandindo a comunidade acadêmica e gerando um crescimento sustentado das ciências e das humanidades.

      No entanto, todos esses esforços conjugados burocratizaram as universidades transformando-as em organizações pesadamente complexas, mas por outro lado modernizaram e qualificaram o sistema público de ensino superior, colocando-o numa posição de liderança na América Latina e de reconhecimento pelos grandes centros universitários internacionais.

    Da mesma forma, as universidades públicas, ao priorizarem o ensino e pesquisa avançados, não se preocuparam igualmente com expansão de vagas na graduação e, de outro lado, o governo, através do extinto Conselho Federal de Educação, ao baixar os níveis de exigência para a criação das instituições privadas, permitiu a disseminação descontrolada de autênticas empresas educacionais.

    Estabeleceu-se no Brasil, um debate que se refletiu na mídia entre governos, dirigentes universitários, membros da comunidade científica sobre a situação das universidades federais que estendeu-se ao conjunto do sistema público. Muitas vezes, é o governo que critica seus altos custos, deixando de considerá-las como um investimento social. Outras vezes, são os dirigentes universitários ou a comunidade científica que protestam contra sua asfixia progressiva pela insuficiência de verbas, congelamento de vagas e salários ou pela deterioração dos laboratórios de pesquisa e do espaço físico. Neste contexto foi denunciada a universidade em ruínas na república dos professores.

        Além dos problemas específicos das universidades estaduais, cabe avaliar as conseqüências das políticas governamentais sobre o destino das 52 instituições federais espalhadas em todo o território nacional, com 400 mil alunos de graduação que são um patrimônio nacional e dependem do governo federal.

        Uma das formas possíveis para aprofundar tal discussão é ampliar sua abrangência, observando o que se passa na América Latina e nos países com maior tradição universitária. Eis alguns parâmetros de referência.

        A dinâmica das tensas relações entre governo e universidades públicas tem se manifestado, não só no Brasil, mas também nos países desenvolvidos e latino-americanos, como resultante de ações governamentais restritivas à forte expansão das universidades decorrente do crescimento demográfico. O pós-guerra favoreceu a massificação das instituições de educação superior, fazendo com que as universidades perdessem seu caráter elitista tradicional, transformando-as em organizações burocráticas e complexas. O momento crítico desse processo foi a eclosão das rebeliões estudantis de 1968 na França, Alemanha e Estados Unidos.

        A partir de então, se estabelece um grande divisor de águas: de um lado, os governos que se inspiram no modelo thatcheriano, ou, mais tarde, se submetem às pressões do Banco Mundial; de outro, os que buscam, apesar da crise fiscal do Estado, manter adequadamente um sistema de avaliação voltado para a melhoria da qualidade acadêmica, níveis satisfatórios de investimentos para infra-estrutura, equipamentos para laboratórios e financiamento competitivo para pesquisa.

    Daí a questão central: o que esperar da universidade brasileira? Primeiro é preciso ter consciência que, para além do público e do privado, a própria instituição universitária está em crise. Pela primeira vez na história, a crise da universidade na Sociedade do Conhecimento atinge a própria instituição multi-secular em que mecanismos concorrentes de formação e de pesquisa científica ou social pretendem restringir a sua função tradicional de formar profissionais polivalentes para o mercado e cumprir sua missão numa sociedade em que o espaço público se transnacionaliza.

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